Especialista reforça necessidade de acompanhamento do conteúdo consumido por crianças e adolescentes na internet
Após algum tempo esquecida, ela ressurgiu nas redes para assustar não só crianças, mas, também, os pais. A Boneca Momo, personagem de um desafio disseminado há alguns meses no Youtube e nas redes sociais, parece ter voltado à ativa, muito embora não se saiba, exatamente, como.
Segundo relatos esparsos dos últimos dias, a personagem foi inserida em vídeos infantis, até mesmo no Youtube Kids – plataforma na qual conteúdo audiovisual voltado à crianças seria certificado e, portanto, seguro. A boneca, supostamente, interromperia conteúdos comuns – como vídeos de slime ou de desenhos animados – para lançar desafios de automutilação, agressão e até de suicídio.
Nesta terça-feira (19) notícias atribuem à personagem medonha a tentativa de suicídio de uma menina de 4 anos, no município de Goioerê (PR). Até a publicação desta matéria, a informação não foi confirmada.
Mas, o fato é que a Momo voltou a despertar a preocupação dos pais e, a partir disso, a emergir um debate fundamental sobre mediação de conteúdos a que as crianças têm livre acesso, atualmente, em dispositivos digitais como smartphones e tablets.
Afinal, qual o risco da Boneca Momo e como os pais devem se preocupar?
Narrativas de medo
Por mais que muitos ainda a tratem como lenda urbana, a Boneca Momo é uma realidade. Ou, pelo menos, tornou-se. A grande repercussão das aparições da personagem, baseada em uma escultura do artista japonês Keisuke Aiso, ganhou espaço no cotidiano das famílias como uma ameaça que oferece um risco difícil de dimensionar.
Por trás das aparições, estariam criminosos virtuais, que produzem os conteúdo e os postam nas redes. Além de causar a histeria coletiva, os vídeos poderiam oferecer riscos reais às crianças, já que os relatos sobre a Momo conectam-se à desafios on-line que incentivam crianças à automutilação.
“No passado, tínhamos algo semelhante, como o homem do saco, a loira do banheiro. Histórias que eram criadas para criar uma retórica do medo, e eram oralmente passadas de grupo a grupo, normalmente nas escolas. Mas, narrativas como a da Momo vão além disso. Elas têm um viés perverso, porque buscam envolver e persuadir os espectadores em desafios com riscos reais”, aponta a psicóloga Luísa Maria Freire Miranda, que pesquisa a relação entre a juventude e novas mídias.
Para Luísa, a internet redimensiona o “boca a boca” das lendas antigas e dão um alcance bem maior às narrativas. Só que, além do alcance, o incômodo também é maior, principalmente entre os pais. Aparentemente, há certa dificuldade dos genitores em assumir o espaço da mediação, fundamental quando crianças estão expostas (mesmo sem saber) a conteúdos inadequados na internet.
“Esses jogos, que antes envolveram a Baleia Azul e agora recorrem à Momo, são elaborados, provavelmente, por adultos que se utilizam disso de forma perversa. Não creio que seja o momento de discutir o que motiva pessoas a criarem esses conteúdos, que teria a ver com uma sociopatia, com perversidade. Mas, a gente entra, mais uma vez, na questão da importância do acompanhamento e da mediação do uso da tecnologia”, aponta a pesquisadora.
A psicóloga crê que os conteúdos inadequados teriam menor repercussão, ou causariam menos danos, caso os pais tivessem hábito de acompanhar o que filhos consomem na internet. No discurso deles, é comum ouvir que é difícil acompanhar a tecnologia. “Mas ninguém precisa se tornar um expert em Youtube para orientar aquilo que o filho vê”, aponta.
O que fazer?
Enquanto autoridades verificam a veracidade das aparições da Boneca Momo em conteúdos infantis, bem como a existência de crimes virtuais que estariam induzindo crianças aos desafios perigosos da internet, há alguns cuidados fundamentais que possibilitam lidar de forma mais segura com conteúdo nocivo na internet.
Os mecanismos de controle parental, como filtros e a busca por conteúdo certificado, são estratégias que evitam a exposição às narrativas de medo, como os jogos perigosos na internet (desafios do desodorante, desafio do desmaio, entre outros) e até mesmo a própria Momo.
As plataformas, como Google, Facebook, Youtube e WhatsApp, também possuem mecanismos para denunciar conteúdos considerados inadequados. Até o momento, porém, as empresas relataram não ter recebido reclamações formais sobre esse tipo de material.
Todavia, a maneira mais efetiva de proteger as crianças é pela mediação de conteúdo. Isso teria duas finalidades: a primeira, ter acesso ao que as crianças estariam vendo, com o fim de protegê-las. E a segunda, estabelecer uma conexão com os filhos, a partir de algo muito presente nessa geração, que são os conteúdos digitais.
“Os pais não podem simplesmente lavar as mãos da tarefa de mediar conteúdo. O bloqueio robotizado do conteúdo ajuda, mas até que ponto ele é eficaz, já que os relatos dizem que a Momo apareceu em um vídeo infantil? Ainda assim, o que me chama atenção é que a Momo e os demais desafios parecem ser só um dos problemas que essa exposição sem mediação pode causar”, aponta Freire.
O ‘outro’ perigo
A pesquisadora alerta para a dificuldade dos pais de entenderem que certos conteúdos aparentemente inócuos podem ser nocivos. Vídeos de unboxing – quando youtubers apresentam à audiência produtos que receberam de empresas, muitas vezes, brinquedos e acessórios infantis – são febre entre as crianças. E nele, também pode morar um perigo.
“Imagina que seu filho pode estar assistindo, todo dia, um youtuber abrir o pacote de um brinquedo que ele recebeu de um patrocinador. Uma boneca, um videogame. Aquele youtuber está fazendo isso da sala de casa, uma sala que pode ser parecida com a sua. Será que a exposição àquilo não pode afetar a ideia de infância que a criança espectadora está construindo?”, provoca Freire.
De fato, os vídeos de unboxing – os “recebidos” – são a coqueluche do momento entre crianças e adolescentes. Além deles, vídeos nos quais jovens apresentam jogos como Minercraft e até mesmo os slimes também são preferência.
“Nesse contexto, o que percebemos é que as crianças estão superexpostas ao fomento de um desejo pelo consumo, algo que atualmente é limitado na publicidade formal. E as crianças estão construindo a subjetividade delas acreditando que talvez seja normal ganhar um brinquedo todo dia. Essa é a ideia de infância que está sendo contruída. A gente tem incitação ao suicídio e à mutilação, mas também temos esse incentivo ao consumo”, pondera.
Cuidados terceirizados
Diante de problemas como os que envolvem a Boneca Momo, mora a sensação de que a preocupação parental só surge porque há certa ameaça ao que os dispositivos digitais representam: enquanto o tablet ou smartphone entretêm, os pais conseguiriam, por algum momento, uma da trégua na rotina exaustiva de cuidar de uma criança.
A partir disso, há quem pense que negar o acesso seja a solução. Mas, não se pode demonizar as tecnologias e dizer que tudo que tem lá, na, internet, não presta. Os pais continuam sendo o melhor filtro.
“É oportunidade de criar mais um vínculo entre pais e filhos, que podem se aproximar das crianças enquanto mediam esse conteúdo. Esse acompanhamento pode até permitir transformar um conteúdo inócuo em algo fértil. Acompanhadas dos pais, as crianças conseguem fazer conexões com a realidade e até mesmo desenvolver pensamento crítico”, conclui.